“O Federalismo” de Sebastião de Magalhães Lima é um tratado político redigido no final do século XIX, que explica os princípios e teorias dos federalismo, apoiando a sua adoção como modelo de governo mais justo e eficaz. Publicamos aqui um pequeno excerto da primeira edição livro, que pode ser lido gratuitamente em https://www.gutenberg.org/ebooks/25690
PALAVRAS PRÉVIAS
Com a publicação do Ideal Moderno, tivemos, principalmente, em vista a vulgarisação das idéas que, no extrangeiro, mais preoccupam os espiritos, actualmente, e tanto concorrem para a renovação philosophica, scientifica e social que caracteriza a nossa época. Desde os bancos da Universidade que vimos fazendo a propaganda do federalismo, como a cupula magestosa, destinada a completar o edificio republicano. Resumindo n’um pequeno volume tudo o que temos publicado a tal respeito, e expondo, n’uma edição portugueza, os principios que defendera no meu livro—La Fédération Ibérique que tão discutido foi, por occasião do seu apparecimento, em Paris, julgo prestar um serviço á democracia portugueza. A obra democratica só será estavel e só poderá triumphar, quando, em vez de incensar homens, procurar apoiar-se nas ideias e nos principios, unico alicerce a uma construcção solida e duradoira.
I – O QUE É O FEDERALISMO
Federação (do latim foedus) quer dizer pacto, alliança, que liga e obriga as duas partes contractantes.
Proudhon define assim a federação: É um contracto ou uma convenção, em virtude da qual um ou differentes chefes de familia, uma ou differentes communas, um ou differentes grupos de communas ou de Estados, se obrigam reciprocamente e egualmente, uns para com os outros, por um ou muitos objectos particulares, cujo encargo pertence exclusivamente aos delegados da federação. Por outros termos: a federação é o justo equilibrio entre os dois polos sobre os quaes se baseiam todos os systemas governamentaes, a auctoridade e a liberdade. Por auctoridade deve comprehender-se «o governo geral», composto dos delegados dos Estados federados; e por liberdade a autonomia municipal.
O federalismo, segundo Pi y Margall, é o unico systema de governo que pode conciliar os variados elementos que se encontram no meio de cada sociedade: raças, religiões, idéas, costumes, linguas, etc., e o unico systema capaz de realisar as aspirações do progresso cujo equilibrio produz a evolução pacifica e continua da humanidade.
A federação, longe de ser uma idéa antiquada, como pretendem muitos, é, pelo contrario, uma idéa do nosso tempo, em perfeita harmonia com as aspirações dos povos modernos. Montesquieu que não pertenceu certamente nem á Antiguidade nem á Edade-Média, considerava-a como o unico systema capaz de evitar os inconvenientes das grandes e pequenas nacionalidades.
Proudhon acabou por fazer do federalismo o seu programma de governo, «aconselhando-o como a unica solução a todas as antinomias politicas, como o melhor remedio contra as usurpações do Estado e a idolatria das massas, como a mais solemne expressão da dignidade humana. É na federação das raças que repousam, n’um equilibrio indestructivel, a paz e a justiça.
Gervinus, um dos primeiros historiadores do seculo, é de parecer que só pela realisação do principio federativo se poderá assegurar a liberdade e a paz da Europa. Em 1852 annunciava elle já o engrandecimento actual da Allemanha, predizendo o fim dos grandes Estados pela sua transformação em federações. Oa paizes unitarios encontram-se expostos a todos os perigos.
Póde bem dizer-se que unificação e federação representam dois graus profundamente distinctos da sociabilidade humana: o primeiro deriva de um empirismo cego, da intervenção irracional de uma poderosa individualidade, ao passo que o segundo é a obra consciente de uma collectividade que procura, nas condições da sua propria existencia, a garantia perpetua da sua independencia.
União e annexação são cousas bem differentes de federação. A annexação indica sempre uma idéa de fôrça e de violencia. A federação, pelo contrario, assenta sobre a idéa de um accôrdo reciproco, de uma mutualidade, de uma idéa baseada sobre o direito e a garantia mútuas.
Cada um dos Estados do Brazil, assim como cada Estado da grande Republica americana, assim como cada cantão da valente Republica suissa, teem assegurados o seu governo, a sua autonomia, os seus magistrados, a sua policia, as suas fronteiras, as suas finanças, a sua administração, e tudo isto bem garantido com a sua bandeira. Estes Estados constituem verdadeiras nações, ligadas umas ás outras pelo laço federal, e preparadas assim para todas as eventualidades que porventura possam surgir.
O federalismo é a evolução social, é a tradição historica, é a lei do progresso, é a acção incessante da civilisação, é a monarchia de Carlos V, transformada n’uma Republica poderosa e indestructivel, dividida em Estados confederados; é, emfim, a alliança dos povos, elevando-se á altura da missão que teem a cumprir na vida europeia. O federalismo é o systema de governo que consiste em reunir differentes Estados n’uma só nação, conservando a cada um d’elles a sua autonomia, sobretudo no que diz respeito aos interesses communs.
A Suissa compõe-se de vinte e dois cantões, ou, para falar com mais exactidão, de dezenove cantões e de seis meios cantões. Estes cantões apresentam, entre si, differenças consideraveis em extensão, população e riqueza, mas gosam todos dos mesmos direitos. Cada cantão é um verdadeiro Estado, tendo leis o codigos especiaes, e governando-se, quer por parlamentos, quer por assembléas populares segundo sua constituição externa.
Encravada no meio da Europa, com 2.500:000 habitantes, sem exercito permanente e sem marinha, a Suissa tem sabido impôr-se ao respeito e á consideração das outras nações, por uma administração modêlo e pela superioridade da sua constituição federal, a qual, no seu art. 2.º diz o seguinte:
«A Confederação tem por fim assegurar a independencia da patria contra o extrangeiro, proteger a liberdade e o direito dos confederados, e augmentar a sua prosperidade commum.»
Citemos ainda alguns artigos:
Não ha na Suissa nem subditos, nem privilegios de logar, de nascimentos, de pessoas ou de familias (art. 4.º).
A Confederação não tem o direito de manter exercitos permanentes (art. 13.º).
Todo o cidadão suisso é obrigado ao serviço militar. Os militares que, no serviço federal, perderem a vida ou arruinarem a saude, teem direito aos soccorros da Confederação para si ou para suas familias (art. 18.º)
A liberdade de consciencia e de crença é inviolavel (art. 49.º).
O livre exercicio dos cultos é garantido nos limites compativeis com a ordem publica e os bons costumes (art. 50.º).
A ordem dos jesuitas e as sociedades n’ella filiadas não podem estabelecer-se em parte alguma da Suissa, e toda a sua acção na Egreja e na eschola é prohibida aos seus membros (art. 51). O illustre publicista Emile Laveleye occupou-se, com toda a imparcialidade, da applicação da doutrina federal á organisação da politica franceza. Examinando, com o auxilio da historia, os diversos elementos sociaes, chegou á conclusão “que sem as liberdades locaes, provinciaes e communaes, a Republica é um titulo sem livro, uma instituição sómente nominal.” Um dos grandes erros da «evolução—accrescenta—foi a destruição das assembléas provinciaes, e duvido que a França chegue a possuir a verdadeira liberdade, sem restabelecer de novo estas assembléas.
Refutando as idéas unitarias e as suas consequencias desastrosas nos governos dos Estados, Laveleye accrescenta: «A Revolução commetteu uma falta, proscrevendo com furor o federalismo e os federalistas.» O federalismo era a unica forma de governo que houvera podido garantir a fôrça e a prosperidade da França, e os federalistas os unicos homens capazes de salvar a Republica. As Republicas que duram e prosperam são federações. Haja vista a Suissa e os Estados-Unidos da America. Temos em nós mesmos o typo do systema. Com effeito o organismo humano é composto de orgãos autonomos, mas subordinados a um centro regulador de todos os nossos actos externos. É uma verdadeira federação onde se observam os principios essenciaes, inherentes á theoria federalista: a unidade na variedade, a autonomia na solidariedade.
Como é sabido e como tantas vezes se tem dito, os planetas, girando á volta do sol e recebendo d’elle o calor e a luz, não teem todos os mesmos movimentos nem a mesma vida. Cada planeta é uma variedade na unidade do systema. Esta variedade na unidade, ou, o que vale o mesmo, esta unidade na variedade é geral na natureza. Todos os seres obedecem á lei da necessidade, excepto o espirito do homem.
Em nosso juizo a idéa federalisia é a idéa republicana completada, alargada e aperfeiçoada. Somos federalistas, socialistas e livres pensadores, por isso mesmo que somos republicanos. A liberdade de consciencia é a base de todas as liberdades e a Republica consagra a liberdade. O socialismo é a expressão da egualdade e a Republica consagra a egualdade. Federalismo significa fraternidade e a Republica consagra a fraternidade humana. De extranhar é pois, que republicanos, como taes considerados, tenham ainda receio de se declararem federaiistas nos tempos que vão correndo, como se para uma propaganda honesta e séria, fôsse preciso deturpar e inverter principios!