A Ausência de Social-Democracia na Crónica de um Ex-Primeiro-Ministro

António Figueiredo

A social-democracia é, ao mesmo tempo, um projeto político, uma visão de sociedade e, sobretudo, um compromisso com a transformação social, como atestava Bernstein: “o movimento é tudo, o objetivo final é nada.”

Num mundo marcado por desigualdades crescentes e desafios globais, resgatar os princípios fundamentais da social-democracia é crucial para desenhar um futuro mais justo e solidário. No cerne da social-democracia está a construção de uma sociedade pós-capitalista baseada nos valores da liberdade, igualdade, justiça social e solidariedade. É a construção de um Estado Social que pretende a completa desmercantilização tanto das pessoas como do trabalho, providenciando serviços universais e gratuitos a todos os cidadãos. É a defesa do cooperativismo e da autogestão, para que os trabalhadores cooperem entre si e não sejam explorados pelo seu trabalho e mão-de-obra. É a defesa da luta sindical e dos direitos laborais. É a defesa de uma cooperação internacional entre os povos de todos os continentes para a verdadeira internacionalização. É a luta constante contra o imperialismo e o colonialismo, pelo direito à autodeterminação e à prosperidade dos povos. Em suma, é a luta pelos direitos sociais de todos aqueles que sofrem com a opressão.

Em Portugal, infelizmente, o termo “social-democrata” ficou cunhado e preso a um partido de centro-direita. Repetidamente os seus líderes tentaram reivindicar para si esta designação, sendo um dos principais o antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Num dos seus mais recentes artigos, com bastante desfaçatez, afirma que a “partir dos anos 80 do século passado emergiram como características básicas da social-democracia, além dos seus valores fundamentais (o ethos), a defesa da economia de mercado assente na livre iniciativa privada e na concorrência”. Devemos levar lições sobre o que é ou não é a social-democracia do agente político que implementou as propinas, elemento profundamente anti-social-democrata na sua concepção? Ou às suas revisões constitucionais que abriram portas a privatizações desastrosas e à diluição, que até hoje dura, do caráter político inicial do SNS?

Embora seja verdade que  o movimento social-democrata tenha enfrentado desafios significativos ao longo do tempo, como a adoção da chamada “terceira via”, que embora tenha trazido vitórias eleitorais, representou uma diluição dos princípios fundamentais do movimento. Com isto, para resgatar a sua relevância, a social-democracia precisa reafirmar o seu compromisso com a emancipação económica e a justiça social.

A União Europeia, por exemplo, oferece um campo fértil para a renovação social-democrata. Apesar das críticas válidas, especialmente em relação à resposta à crise de 2008, a sua reforma é mais desejável do que sua dissolução. Transformá-la numa união verdadeiramente democrática e solidária deve ser um objetivo prioritário, capaz de expandir os direitos conquistados pelos europeus a outras partes do mundo.

Em última análise, a social-democracia é uma proposta para integrar teoria e prática. Não se trata apenas de reagir aos problemas do presente, mas de construir um futuro mais justo e sustentável. Ela lembra-nos que o progresso não é automático; este exige esforço coletivo, visão e coragem para transformar as estruturas que perpetuam desigualdades.

Hoje, mais do que nunca, é essencial recuperar o papel revolucionário da social-democracia. Longe de ser ultrapassada, ela oferece um mapa para navegar os desafios do século XXI. Reformar as instituições, fortalecer a solidariedade internacional e promover a cooperação entre as classes são caminhos que nos podem levar a uma sociedade onde liberdade, igualdade e justiça não sejam ideais distantes, mas realidades concretas.

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