O termo «meritocracia» foi criado pelo sociólogo britânico Michael Young em 1958 no seu livro The Rise of the Meritocracy. É bastante curioso que esta designação tenha sido cunhada por uma pessoa envolvida no Partido Trabalhista de Clement Atlee, mas a verdade é que, como é apanágio de muitas ideias interessantes, quase como que num jogo de telefone estragado, este conceito foi sendo várias vezes distorcido até redundar em vídeos do tik-tok em que algumas figuras mais ou menos sinistras ostentam a sua riqueza e a sua rotina distópica que invariavelmente implica passar três horas por dia no ginásio, tomar banhos de gelo e fazer uma dieta à base de carnes vermelhas.
A rotina distópica só tem algum efeito porque tem como subjacente a crença de que o esforço e a dedicação individuais são suficientes para alcançar a excelência e concretizar qualquer objetivo, algo que é extremamente sedutor.
Segundo esta visão meritocrática, qualquer pessoa, independentemente da sua origem social, poderia prosperar através do trabalho árduo, da disciplina, da poupança e do investimento consciente. O sucesso, neste contexto, está frequentemente associado à acumulação de capital, mas pode também manifestar-se em conquistas académicas, desportivas ou noutras áreas. No entanto, a realidade é bem mais complexa. As desigualdades estruturais fazem com que os indivíduos não partam todos do mesmo ponto de partida, tornando o caminho para o êxito desigual e, para muitos, significativamente mais árduo.
Assim, podemos mesmo questionar: Existe realmente mérito ou meritocracia? Existe uma ideia de justiça subjacente ao ideal meritocrático? Quais são as alternativas a este sistema de valores?
É difícil sustentar a existência de uma verdadeira meritocracia. Embora haja pessoas que, graças ao seu talento, resiliência e, não raras vezes, devido à mão invisível da sorte, consigam alcançar os seus objetivos, a realidade é que o contexto é determinante. Fatores como a origem social, o acesso a oportunidades e as condições de partida influenciam de forma decisiva o percurso de cada indivíduo, tornando o ideal meritocrático muito mais uma exceção do que uma regra.
Se analisarmos os primeiros-ministros britânicos desde o pós-guerra, verificamos que em dezoito chefes de governo, apenas quatro não estudaram em Oxford. Parece existir um caminho previsível para ascender ao poder, algo que supera o mérito, mas que é normalmente entendido como um «percurso». Estudar numa escola de elite, trabalhar em empresas de elite ou seguir a vertente académica numa grande faculdade. O sucesso parece estar dependente deste contexto.
Se fizermos esta mesma análise ao caso português, verificamos que, desde 1976, o país teve catorze primeiros-ministros, sendo que metade é licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Podemos realmente atribuir isto ao mérito? Ou será que o fator determinante é o contexto, ou, como referimos anteriormente, o «percurso»? A concentração de lideranças vindas do mesmo meio académico sugere que as oportunidades não estão igualmente distribuídas, reforçando a ideia de que o sucesso depende, em grande medida, do ponto de partida.
A ideia de que, para alcançar determinado estatuto, é necessário percorrer um trajeto específico reflete um sistema onde a elite se fecha sobre si mesma, mantendo-se numa bolha que discute questões frequentemente inacessíveis à maioria da população. Esta dinâmica não só contribui para o descontentamento democrático, como também corrói gradualmente o sistema político.
Se aceitarmos que a meritocracia pressupõe um ponto de partida igual para todos, torna-se evidente que falar em verdadeiro mérito é, no mínimo, um exagero. Parece mais adequado falar numa ilusão meritocrática, um conceito aspiracional ao qual os indivíduos aderem porque todos queremos acreditar que somos mais do que as nossas circunstâncias e que o esforço pessoal basta para alcançar qualquer objetivo. No entanto, sem um sistema verdadeiramente meritocrático, é difícil falar em justiça, dado que essa justiça existiria apenas num plano idealizado, sem correspondência prática.
Foi através da ilusão da meritocracia que, sobretudo a partir das décadas de 1970 e 1980, com o apogeu do neoliberalismo, se consolidou a ideia de que o esforço individual é suficiente para ultrapassar qualquer obstáculo, chegando aos dias de hoje como uma caricatura em forma de vídeo curto numa rede social chinesa.
Quais são, então, as alternativas? Como nos sugere Michael J. Sandel, o caminho passa por recuperar o espírito de comunidade, devolver dignidade ao trabalho e reconhecer que todos os indivíduos, independentemente da sua função ou formação académica, são peças essenciais na construção do tecido social.
Apresentar isto desta forma leva a querer que o caminho é fácil, mas a realidade é que este é um ideal que nunca estará completamente despido de utopia. E, num tempo em que o individualismo parece ter vencido a guerra cultural, torna-se difícil imaginar uma sociedade mais equilibrada, onde o papel de cada pessoa seja compreendido e entendido num contexto mais abrangente.
Numa época em que ideias como as dos crypto bros, gym bros e alpha males, entre outras importações inquietantes, ganham força entre os mais jovens, resta-nos procurar formas de contrariar esta nova cultura, demonstrando que o caminho que estamos a seguir conduz à falência social e à intolerância, sendo essencial combater estas ideias nos mesmos meios em que são difundidas, afirmando de forma clara que, no fundo, a vida idílica de que tanto falam nada mais é do que um engodo.
Terminando com Gramsci: «Pessimismo da razão, otimismo da vontade.» Podemos sentir que, perante a evolução do mundo, o nosso espaço de ação está cada vez mais limitado e que os valores que defendemos foram derrotados, mas, como não acredito em teorias da História nem no seu fim, reconheço que assumimos um papel (ainda que por vezes pequeno) de transformação da nossa realidade.
No fundo, o nosso olhar sobre a atualidade não nos permite adotar uma postura que não seja a do pessimismo, mas o certo é que podemos fazer sempre alguma coisa para não deixar que o espaço público seja permanentemente ocupado por pessoas e por ideias nocivas. E o nosso contributo para isso pode ser, por exemplo, escrever para um blog e esperar que alguém concorde connosco.