No início dos anos 80, assistimos à implementação duma Reforma Fiscal Conservadora, protagonizada pelos políticos neoliberais, liderados por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, que se alastrou pelo mundo inteiro. Esta reforma consistiu numa diminuição brutal dos impostos sobre os mais ricos, com a promessa de maior crescimento económico e prosperidade para todos – o famoso mito “crescer primeiro, distribuir depois”.
Esta promessa nunca se cumpriu, o ritmo de desenvolvimento económico diminuiu e a prosperidade só foi uma realidade para a classe capitalista. A reforma conservadora traduziu-se na aceleração da tendência das sociedades capitalistas para a concentração da riqueza e aprofundamento das desigualdades sociais, invertendo o caminho de construção duma sociedade mais próspera e justa, que vinha a ser realizado entre 1950-80 pelo movimento socialista em vários países.
Nos dias de hoje, estamos perto de atingir o zénite dessa tendência da produção capitalista, desigualdades económicas num nível elevadíssimo e concentração acentuada da riqueza, agravadas pela crise pandémica, pela crise inflacionista e pela instabilidade geopolítica atual. Encontramos-nos, por isso, num momento em que necessitamos de escolher entre duas alternativas: a servidão económica sob o jugo de ferro duma classe capitalista cada vez mais pequena e mais poderosa; ou a organização social do trabalho e da produção, ou seja, o socialismo democrático.
Socialismo este que alia e equilibra as exigências da liberdade individual e da justiça comunitária, com as necessidades da produção e da distribuição da riqueza. Tendo, assim, como base três pilares fundamentais: a socialização gradual das forças produtivas; uma justa e equitativa repartição da riqueza produzida, uma vez satisfeitos os encargos sociais; e a liberdade do consumo.
Os socialistas democráticos determinam a construção do socialismo pela via de reformas conduzidas pelo Estado, procurando, em cada reforma proposta, uma aproximação ao ideal da sociedade socialista, utilizando os instrumentos reformistas para a concretizar. O sistema tributário é um dos instrumentos mais poderosos à disposição do Estado, dado o seu potencial para financiar outras reformas e a sua capacidade de distribuir justamente a riqueza produzida. Daqui, resulta a necessidade de construir e implementar uma nova reforma fiscal. Uma reforma que ponha fim ao conservadorismo fiscal vigente, uma reforma que acabe com a concentração excessiva de capital, uma reforma que diminua brutalmente as desigualdades sociais, uma reforma que impulsione o crescimento económico e a inovação. Em resumo, uma Reforma Socialista.
Para a concretização desta proposta, é imperativo que se inicie uma discussão para a construção coletiva desta Reforma Fiscal Socialista, com o debate de várias medidas e modelos para os diversos tipos de impostos. Este texto antecipa algumas das propostas que tenho vindo a defender nos últimos anos, incidindo, sobretudo, sobre quatro tipos de imposto: IRS, IRC, IVA e Impostos sobre a Riqueza.
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)
Apesar de mais de 40% das famílias não pagarem IRS, existe a ideia de que este é demasiado elevado, o que não corresponde à realidade, visto que o peso do IRS no PIB português é inferior à média da UE e da OCDE.
Outra ideia pré-concebida em relação ao IRS é de que este é um imposto muito complexo devido ao número de escalões, mas a verdadeira complexidade do IRS é originada pelas opções de não englobamento existentes, que aplicam uma flat tax a certos tipos de rendimentos, que beneficiam apenas os 10% mais ricos da sociedade portuguesa.
Outro contributo para a complexidade deste imposto são as mais de 140 deduções fiscais existentes, muitas delas sem sentido e fruto do trabalho de lobbying. Os principais beneficiários da existência deste enorme número de deduções são os cidadãos mais ricos, já que são aqueles que têm acesso a meios de otimização fiscal. Na verdade, Portugal é um dos poucos países da UE em que os benefícios fiscais em sede de IRS contribuem para diminuir a progressividade deste imposto.
O IRS é o imposto com maior capacidade de redistribuição de riqueza do sistema fiscal português, pelo que, mais do que possíveis descidas gerais das taxas deste imposto, o que é necessário é simplificar ao máximo o regime de IRS e aumentar ainda mais a sua progressividade.
Neste sentido, propõe-se:
- O fim das opções de não englobamento, acabando com a sub taxação dos rendimentos do capital e simplificando o sistema fiscal. Sendo que, numa fase transitória, a obrigatoriedade de englobamento de todos os rendimentos poderia ser aplicada apenas ao último escalão e, progressivamente, aplicada aos outros escalões nos anos seguintes;
- A revisão das mais de 140 deduções e benefícios fiscais em sede de IRS, criando uma listagem reduzida e simples de deduções fiscais e introduzindo a possibilidade de coleta negativa para benefício das pessoas com rendimentos mais baixos, de forma a simplificar e tornar o sistema fiscal mais justo;
- O aumento da progressividade dos escalões de IRS, com a subida do mínimo de existência, a diminuição das taxas sobre os escalões mais baixos e a criação dum novo escalão para aumentar a tributação sobre o 1% da população com rendimentos mais elevados;
- O fim dos regimes especiais de IRS: o IRS Jovem, o Programa Regressar e o regime de IRS dos Residentes Não Habituais são regimes que criam uma maior complexidade no sistema, que beneficiam os cidadão com rendimentos mais elevados e que são ineficazes no alcance dos objetivos a que se propõem;
- Indexação dos limites dos escalões à evolução do salário médio e da inflação, para aumentar a previsibilidade do sistema e impedir o aumento indireto da tributação por via da não atualização dos escalões.
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC)
Em Portugal, existe o mito de que o imposto sobre os lucros das empresas é demasiado elevado, percepção causada pela elevada taxa máxima tabelada, mas sem adesão à realidade concreta. Para além de uma grande parte das empresas portuguesas não pagarem IRC, o peso deste imposto no PIB é inferior à média da UE e as taxas efectivas liquidadas pelas empresas são inferiores às taxas estatutárias.
Este imposto desempenha também uma tarefa importante na garantia de progressividade de todo o sistema fiscal, visto que são os cidadãos mais ricos que detêm a maioria das ações das empresas.
O grande problema do IRC é a sua complexidade, derivada dos mais de 100 benefícios fiscais existentes, que beneficiam as grandes empresas, que têm acesso a ferramentas de otimização fiscal, e prejudicam as pequenas e médias empresas, que não têm meios para aceder a essas ferramentas. Por isso, mais do que ter uma taxa reduzida de IRC, Portugal precisa de simplificar o funcionamento deste imposto e definir benefícios fiscais que incentivem a transformação da economia portuguesa e a sua reindustrialização.
Neste sentido, propõe-se:
- A criação de uma taxa única de IRC, eliminado a derrama estadual e a derrama municipal, que se traduziria numa simplificação significativa do sistema fiscal, bem como o fim do desincentivo ao crescimento das empresas portuguesas;
- A revisão de todos os benefícios fiscais existentes, criando uma tabela simples de incentivos às empresas, com objetivos claros de promover o aumento da produtividade da economia portuguesa e, consequentemente, o crescimento económico. Esta tabela deve estar alinhada com o plano de transformação do perfil de especialização da economia e com o projeto de reindustrialização do país.
Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA)
Os impostos indiretos, onde o IVA é o mais importante, são os únicos realmente muito elevados no nosso país, estando acima da média da UE e da OCDE. A discussão pública concentra-se, erradamente, no debate sobre os impostos diretos, mas devíamos discutir mais os impostos indiretos, sobretudo, o Imposto sobre o Valor Acrescentado, que sozinho arrecada mais receita fiscal do que o IRS.
O IVA tem um enorme problema: é um imposto regressivo em relação ao rendimento, ou seja, os pobres pagam, proporcionalmente, mais IVA do que os mais ricos, já que consomem uma percentagem maior do seu rendimento, em virtude de terem salários muitos baixos.
Uma das políticas que foi adotada para tentar diminuir a regressividade do IVA foi a introdução de taxas diferenciadoras para diferentes produtos e serviços. Resumidamente, ao aplicar taxas menores a bens essenciais estaríamos a diminuir o peso deste imposto no orçamento das famílias mais pobres, que destinam grande parte do seu consumo a estes bens. No papel, a ideia parecia ser bastante boa, mas os resultados alcançados deixam a desejar.
Vejamos, em primeiro lugar, o IVA continua com um nível de regressividade demasiado elevado. Em segundo lugar, a introdução das taxas diferenciadoras aumentou o grau de complexidade do sistema fiscal e dos próprios mercados económicos, abrindo lugar ao lobbying de diversos setores, que acham que os seus produtos e serviços são de tal forma essenciais para a vida das pessoas que merecem pagar menos impostos.
Outro dos problemas de aplicar taxas reduzidas de IVA a certos produtos é o seu fraco impacto na redução dos preços dos bens. Ao contrário dos aumentos de IVA que se repercutem imediatamente em subidas dos preços, as reduções de IVA não têm impacto semelhante, o que faz com que as taxas diferenciadoras sejam muitas vezes mais subsídios indiretos a certos setores económicos do que descidas de impostos para as famílias.
Porém, ter um IVA regressivo não é uma inevitabilidade, existem formas e modelos capazes de transformar o IVA num imposto progressivo.
Neste sentido, propõe-se:
- O estudo dos vários modelos possíveis para um IVA progressivo. Por exemplo, um sistema com uma taxa fixa de IVA igual para todos os produtos, mas onde o Estado devolveria parte do IVA pago aos consumidores, a exemplo do que já foi feito com o AUTOvoucher e o IVAucher;
- No imediato, devolver parte do IVA suportado pelas famílias mais pobres, em sede de IRS, mesmo para as famílias que não pagam este imposto (através da possibilidade de coleta negativa).
Impostos sobre a Riqueza
Portugal é dos países onde a tributação sobre a propriedade (propriedade imobiliária, riqueza (líquida de dívidas), heranças, doações, transações financeiras e de capital) é bastante baixa, representa apenas cerca de 4,2% da receita fiscal total, enquanto a média da OCDE é de 5,7% do total da receita.
A desigualdade de riqueza é ainda mais acentuada do que a desigualdade de rendimentos, daí a necessidade de concentrar uma maior carga fiscal nos impostos sobre a propriedade, para permitir aliviar os impostos sobre o consumo e os rendimentos do trabalho.
Uma maior tributação da riqueza tornaria o sistema fiscal português mais progressivo e mais justo, fazendo com que quem mais tem contribua de facto mais do que quem vive apenas do salário do seu trabalho.
Neste sentido, propõe-se:
- A criação dum imposto progressivo sobre heranças milionárias (superiores a um milhão de euros, líquidos de dívidas), contribuindo para a diminuição das desigualdades intergeracionais;
- A criação dum cadastro público que permita conhecer os detentores últimos dos ativos financeiros emitidos em Portugal;
- O aumento da progressividade do Adicional ao IMI, taxando de forma mais acentuada a propriedade imobiliária milionária, sobretudo, a detida por indivíduos ou empresas com residência fiscal em offshores;
- A defesa nos fóruns internacionais, sobretudo dentro da UE, do aumento da tributação sobre os super-ricos.
Estas são apenas algumas propostas que poderão servir de base para o debate urgente sobre a necessidade duma Reforma Fiscal Socialista, que proporcione mais justiça social, menores desigualdades sociais, maior estímulo ao desenvolvimento económico e um país mais livre.