A esquerda portuguesa ainda está em choque com os resultados de 18 de Maio. Depois do luto pelo desaparecimento do país em que julgava viver, terá agora de entrar num período de profunda reflexão. O resultado irá depender da qualidade do diagnóstico que se fizer sobre o que está a correr mal.
Um bom diagnóstico começa pela aceitação dos factos. O primeiro facto óbvio é que Portugal não é um caso anormal no quadro internacional. O que foi excepcional ao longo de anos foi Portugal e Espanha não acompanharem a tendência de crescimento da direita populista e nativista. Porque nos surpreendemos então com a rápida ascensão do Chega?
Talvez a surpresa resulte da desconexão entre a política doméstica e internacional. Como já é habitual, os assuntos internacionais ficaram de fora da campanha para as legislativas, refletindo uma cultura política que não sabe articular os contextos externo e interno. Para um pequeno Estado que tanto depende do contexto externo, este hábito pode sair caro.
O perigo que agora corremos é que esta mesma incapacidade de olhar para o plano global se repita no debate sobre a crise da esquerda. Claro que se devem discutir propostas para resolver os problemas concretos e prementes do país. Mas se nos ficarmos por aí, Portugal estará condenado a repetir, com atraso de anos, os ciclos políticos a que assistimos na Europa e no mundo.
Se, pelo contrário, reconhecermos que os desafios que enfrentamos são estruturais e não circunstanciais, globais e não nacionais, conseguiremos levar a reflexão mais longe e formular propostas que correspondam ao nosso tempo histórico. Para passar da reacção à acção, temos de nos perguntar: o que há de comum a todo o mundo democrático que explique a tendência de crescimento do extremismo de direita?
Duas grandes tendências caracterizam o momento que vivemos: a desigualdade e a desordem internacional. Concentremo-nos na primeira. Desde Aristóteles que se reconhece que a desigualdade económica é um forte potenciador de instabilidade política e que uma classe média numerosa traz equilíbrio a sistemas políticos não autoritários (Política, Livro IV, 1295b).
Esta mesma ideia está na base da análise de Peter Turchin. Em End Times (2023), o cientista expõe as conclusões da sua análise quantitativa a diversas sociedades em crise, desde o Neolítico até aos nossos dias. Todas elas passaram por fases de integração e fases de desintegração, por vezes fatais.
O principal mecanismo que leva as sociedades a passar da estabilidade para a desordem é o que chama de “bomba da riqueza”, através da qual os recursos são “bombeados” das classes mais baixas para as elites. Quando isto acontece em excesso, as elites não só ficam mais ricas, como crescem em número.
Segue-se então uma “dança das cadeiras”, em que as novas elites económicas ou intelectuais tentam ocupar altos cargos públicos. Como estes são finitos em número, a competição vai aquecendo até que os aspirantes frustrados se decidem pela destruição do sistema. Nascem assim as contra-elites que lideram as revoluções. O apoio vem das massas, empobrecidas pela “bomba da riqueza”.
Mesmo que não tenhamos a formação em matemática para avaliar as análises estatísticas de Turchin, o padrão por ele identificado é verosímil quando olhamos para a trajetória das sociedades ocidentais no último século. O sentimento de união social que resultou da II Guerra Mundial levou as elites económicas a aceitarem impostos que hoje parecem extraordinários. Basta lembrar que a taxa de imposto sobre o escalão superior de rendimentos nos EUA ficou acima dos 90% até 1964.
Entretanto, este “contrato fiscal” mudou profundamente. A partir dos anos 80, o imperaram o neoliberalismo e a doutrina do “greed is good”, uma história bem contada pelo historiador Gary Gerstle em The Rise and Fall of the Neoliberal Order. Hoje, o imposto máximo sobre o rendimento nos EUA é apenas de 37%, e as elites económicas não parecem dispostas a fazer sacrifícios no curto prazo a fim de garantir estabilidade social no longo prazo.
No entanto, é evidente que a desigualdade crescente já causou a falência da noção de “meritocracia” que sustentava o contrato social norte-americano, como defende Michael Sandel em A Tirania do Mérito. A desilusão das massas, que pela primeira vez na memória colectiva enfrentam um futuro pior do que o dos seus pais, significa que há um reservatório de potenciais recrutas para uma revolução, seja ela mais ou menos violenta. E não faltam proto-elites frustradas para os liderar.
Vivemos mesmo na era da frustração. Só isso já nos colocaria uma tarefa difícil o suficiente: como reformular o contrato social para garantir uma relação mais justa entre elites e povo? Temos ainda de adicionar o impacto das actuais tensões geopolíticas: como fazer frente aos gastos com a defesa e segurança num cenário em que os EUA estão indiferentes ao destino da Europa? E como reorientar as nossas economias num mundo em crescente desglobalização?
Estas perguntas terão várias respostas. O que importa é debatê-las. Toda a crise é uma oportunidade, e a esquerda deve aproveitar esta para pensar além do dia-a-dia e dos ciclos noticiosos nacionais para debater diferentes visões sobre como isolar o país da era da frustração que se vive em todo o mundo ocidental.